P
arece óbvio que gostar de samba não é um pré-requisito para ser brasileiro, assim como gostar de tango não o é para ser argentino. Acima dos gêneros enraizados e solidificados na superfície do senso comum e dos estereótipos, paira a música admirável do criativo Ramiro Musotto, um argentino apaixonado pela exuberância dos rítmos baianos e africanos. Seu nome, por ventura, ficou certo tempo ocultado entre as fichas técnicas como percussionista e produtor - de gente como Margareth Menezes, Gerônimo, Daniela Mercury, Lulu Santos, Skank e Lenine - e nossa intenção é saudá-lo por meio destas linhas, como artista e como um atuante ímpar na cena da cultura popular baiana.Uma longa trajetória foi percorrida até o artista chegar no disco em questão. Saiu da Argentina com destino a São Paulo em 1984, e depois esticou corpo e alma para Salvador, onde conviveu com os primórdios da axé music, ajudando tanto na criação, quanto no desenvolvimento deste gênero. Seu desinteresse e o consequente abandono por este gênero musical seria consolidado com os desvarios mercadológicos sofridos pelo mesmo. Quase duas décadas após a chegada de Ramiro ao Brasil, "Civilização e Barbarye" era lançado em 2006, fundamentando-se conceitualmente na globalização e seus contrastes. Para tanto, Musotto costurou samples e instrumentação orgânica: une cantos de crianças indígenas guaranis com discurso zapatista, leva um choro de Jacob do Bandolim (Assanhado) para o lado do eletro-samba com cavaquinho, mistura referências do cangaço e sons rituais de candomblé, reutiliza um antigo tema cubano, Yambú (dos Muñequitos de Matanzas), põe guitarra de acento afro-caribenho em chula do Recôncavo Baiano (M'Bala).
"Tentar ver o outro de uma maneira diferente. De uma maneira ampla e objetiva que impeça que os conflitos apareçam: a eletrônica e étnica. O tecno e o regional. O primeiro mundo com o terceiro: civilizacao e barbarye. Brasil e Argentina: Sudaka. Acho incríveis os cuidados que temos que ter pra misturar ritmos e músicas de diferentes lugares para que depois tudo soe harmonioso. É como um símbolo do que se passa no mundo hoje, não temos cuidado em entender nem em como nos misturar e o mundo está cheio de racismo, xenofobia e incompreensão." ~Ramiro Musotto em entrevista para o Diário do Nordeste
Impacto ou no mínimo surpresa, são algumas impressões sentidas por quem se enveredar pela vitalidade da música de Musotto. Poderosa, ela ativa sensações inusitadas. Como se tomasse o ouvinte pela mão, ela o convida à rodar o mundo, afim de mostrar a vivacidade de culturas desconhecidas. Corta a face como um sopro de vento, e traz o sabor do novo, do inusitado, sabor que nos mantêm vivos.
Dê o play, macaco!
"[2007] Civilização e Barbarye"
1. Ramiro Musotto - Ronda (2:50)
2. Ramiro Musotto - Ochossi (3:14)
3. Ramiro Musotto - Gwyra mi (4:31)
4. Ramiro Musotto - M'bala (4:24)
5. Ramiro Musotto - Nordeste / Béradêro (3:35)
6. Ramiro Musotto - Ogum (3:42)
7. Ramiro Musotto - Assanhado (4:27)
8. Ramiro Musotto - Majno ma bi (3:16)
9. Ramiro Musotto - Mbira (3:43)
10. Ramiro Musotto - Yambú (1:59)